Carta publicada no livro Chá das 3 – investigação, criação e memórias.
Caro amigo colaborador, eu vou contar somente para você duas histórias que aconteceram comigo.
Há muito tempo, eu vi uma fotografia famosa. Ela retratava um menino africano muito magro sentado em um chão de barro vermelho. O corpo dele estava coberto de moscas. Ele mantinha as pernas cruzadas e olhava fixamente para a câmera. As moscas se confundiam com a pele dele. Enquanto olhava a fotografia, eu fiquei pensando na capacidade humana de se adaptar. Eu concluí que aquele menino estava adaptando a existência dele à existência daquelas moscas.
Também há muito tempo, eu estava no Peru assistindo a um grupo de jovens estudantes de teatro em treinamento com bandeiras. Eles improvisavam individualmente. A cada estudante correspondia uma única bandeira. Assim como havia uma grande variedade de corpos, havia também uma grande variedade de bandeiras. Uma jovem em especial me chamou a atenção. Ela era muito pequena, e a bandeira que lhe cabia era, desproporcionalmente, muito grande. A cada vez que ela era surpreendida por sua incapacidade de prever a forma resultante na bandeira, ela se irritava e tentava reagir com um golpe violento: um movimento rápido e forte. No entanto, tudo se repetia, e ela ficava cada vez mais ansiosa por conseguir uma bela forma na bandeira. Ela não se dava conta de que, daquela maneira, ela desencontrava cada vez mais seu corpo de seu objeto. Um e outro se apequenavam naquele embate. Ela parecia não estar conseguindo adaptar sua existência à da bandeira. E ela ainda teria que adaptar muitos outros objetos que ainda seriam colocados em cima dela. Pelo menos, como atriz. Ao final, um tremor percorreu todo o seu corpo, denunciando a sua frustração.
Eu não sei como as duas histórias continuaram. Será que aquele menino sobreviveu sobre aquele chão vermelho? Será que aquela jovem estudante se transformou em uma grande atriz?
Mas eu sei que você sabe que eu estou mentindo e que uma dessas histórias não aconteceu comigo.
Manoel Prazeres, Rio de Janeiro, 16 de julho de 2015