Carta publicada no livro Chá das 3 – investigação, criação e memórias.
Esta carta está pronta há 25 anos. Ou quase pronta.
Ela começava assim: "O texto é um dos elementos da cena. No entanto, é o único que já existe a priori, pelo menos nas encenações em que se recorre à literatura dramática já consolidada. Não se fazem cenários, figurinos, planos de luz ou partituras musicais à espera de uma eventual encenação. Ressalva seja feita à preexistência da partitura musical e do libreto nas óperas, operetas e revistas musicais. O que, entretanto, não altera o raciocínio aqui apresentado."
Como você pode perceber, eu já estava preocupado na época com as questões relativas ao traumático momento de encenação do texto teatral.
Ela continuava: "Existir a priori significa também já ter autoria determinada e, em muitos casos, consagrada. Diz-se, então, que fulano está montando um Pirandello. A figura de linguagem assim empregada traz a reboque a exigência de que o diretor e sua equipe encontrem e consigam mostrar ao espectador a essência da obra e, por extensão, do autor."
Eu, então, desafiava o senso comum e afirmava sem medo de represálias: "Mas essa inocência está perdida, queiramos ou não, em longínquos tempos passados. Qual inocência? A de que existe uma única essência na obra, de exclusiva responsabilidade do autor, e que a tarefa da encenação é a de servir de meio para a sua aparição."
Por um momento, recuei estrategicamente e resolvi fugir do centro do ringue elogiando a "qualidade indiscutível" do trabalho de "historiadores e teóricos", condenando atitudes irresponsáveis e me aventurando a filosofar sobre "pensamento e ideologia".
Mas eu já tinha o golpe final preparado e meti o pé na porta: "É simples... No mundo moderno, qualquer enunciado seja lá qual for, original ou não, é de propriedade exclusiva do sujeito que o reproduz, independentemente do meio empregado. Tornamo-nos, então, autores. Mais precisamente, estamos condenados a ser autores. E não sendo original o enunciado, isso significa que dele nos apropriamos e sobre nós recai toda a responsabilidade por sua elocução."
E, assim, caro amigo colaborador, não acredito, como já disse, em inocentes nesse campo de batalhas. Toda escolha, por menor que seja, representa um posicionamento, uma implicação profunda, uma adesão ou cumplicidade. Um artista que pretenda ser tratado como tal, não poderá jamais abdicar de sua responsabilização perante a obra, sob o risco de estar abdicando de sua imaginação.
E você deve estar agora me perguntando: "E quando o texto teatral também não existe a priori?" Nesse caso, o autor (quem assina o texto) terá que estar preparado para a difícil tarefa de transitar entre a presença e a ausência. Sublimar a sua "essência". Libertar-se, dissolvendo-se no coletivo.
Manoel Prazeres, Rio de Janeiro, 13 de julho de 2015