A fronteira – 8 cartas para 8 autores – Carta 4

Carta publicada no livro Chá das 3 – investigação, criação e memórias.


Caro colaborador, não sei se você leu algum dia o meu texto Calígula – o príncipe imoral. Acho que não. Não é um texto fácil de ler. Muito menos fácil de ser interpretado. Os personagens usam os pronomes nas segundas pessoas, no singular e no plural: "A vossa família? A família imperial. Tu te esqueces disso?" Fazem várias referências à história do império romano e, particularmente, à dinastia julioclaudiana: "Minha mãe era neta do divino Augusto. Filha de sua querida filha Júlia. Tibério era apenas filho de Lívia." Usam e abusam de formas indiretas: "Tu deves saber apenas o que for a minha vontade que saibas."


Provavelmente você sabe que, por muitos anos e com vários grupos de jovens atores e atrizes, eu trabalhei de diversas formas com esse texto. Mas foi com Rick, Camila e Bianca que me dediquei mais intensamente a um objetivo muito específico: torná-lo "natural" em suas bocas, ou seja, aproximá-lo ao máximo da embocadura com que jovens cariocas conversam, por exemplo, na praia.


Durante vários meses, os três praticaram uma ginástica que consistia exclusivamente na leitura do texto. Uma, duas, três leituras por ensaio. Não estavam obrigados a decorar o texto. E até mesmo entender em detalhes o seu significado era de importância secundária. O desafio era exclusivamente a tal da naturalidade. Conforme obtivemos os primeiros resultados, começamos a experimentar a presença de um espectador sentado entre os atores, em geral acomodados em sofás e poltronas. A naturalidade conquistada começava a ficar evidente na quase invisibilidade do espectador para os atores. Ou em sua absorção pelo ambiente ao redor. Um dia especialmente delicioso foi quando descemos para a praça e fizemos a leitura em pé na calçada de um bar bebendo chope: garçom, pedestres, o entorno era indiferente.


O resultado final foi visto nas salas de dois apartamentos e na área de acesso aos camarins do Teatro Glauce Rocha. Desde então, eu tenho a certeza de que é possível ao ator construir pontes muito sólidas que ele possa usar para atravessar sem sobressaltos, nos dois sentidos, a fronteira entre o cotidiano e o extracotidiano, entre o real e o imaginário, entre a vida e a ficção.


Manoel Prazeres, Rio de Janeiro, 26 de julho de 2015