Dramaturgias articuladas em Eugenio Barba: ator, encenador e espectador

Artigo publicado na Revista Sinais de Cena, 3(1), 279–286.


Abstract


Throughout the 20th century, there was an intense debate about the function of the text in the theatrical event. One of the consequences of this debate was that, in the passage to the 21st century, the idea that the word dramaturgy would no longer be exclusively applied to the literary writing of a text for the theatrical scene was already consolidated. Nor to its interpretation. Moreover, it could even not be linked to any text or meaning.


The present article intends to point out the articulation of the dramaturgies of the actor, the director and the spectator followed by the director Eugenio Barba and his theater group Odin Teatret.


Keywords: Dramaturgy; Dissolution; Decentralization; Actor; Director; Spectator.


– Eis como abordo um novo papel – disse Tortsov. – Sem qualquer leitura, sem qualquer conferência sobre a peça, os atores são convocados para ensaiá-la.

– Como é possível? – foi a reação perplexa dos alunos.

– E tem mais. Pode-se ensaiar uma peça que ainda não foi escrita. (Stanislavski, 1984: 257)


Dissolução e descentramento da dramaturgia


Stanislavski, ao escolher estas breves palavras como abertura de um capítulo intitulado “Das ações físicas à imagem viva”, está antevendo uma série de pontos de vista que, ao longo do século XX, no interior de um intenso debate, alteraram profundamente o conceito de dramaturgia(1). Provavelmente, ele não se deu conta disso ao fazê-lo. Para começar, o título do capítulo já ilumina um processo que não mais estará sob a autoridade do autor do texto da peça que será ensaiada. Em seguida, duas novas autoridades são instituídas: os atores que, na posse de suas ações físicas, serão capazes de imprimir uma imagem viva à representação e o encenador que, livre para organizar o processo, escolhe convocá-los para os ensaios, antes de qualquer leitura do texto. E, ao final, termina sugerindo que talvez, algum dia, o autor e seu texto não serão mais necessários ao processo e à representação.


Esse dia chegou e, se a dramaturgia já não serve para compor peças de teatro, “para que serve a dramaturgia, então?” Danan faz a pergunta e procura pela resposta:


(…) a dramaturgia tem de deixar à encenação a liberdade de se exercer e aos actores a liberdade de representar. (…). A dramaturgia deve dissolver-se no trabalho do actor e no gesto da encenação. Dissolver-se neles alimentando-os. (Danan, 2010: 56)


Hoje, a dramaturgia está dissolvida em inúmeras dramaturgias. Três delas podem ser consideradas como fazendo parte da tradição: a do autor, a do dramaturgo e a do encenador. São as dramaturgias diretamente associadas ao conteúdo, ao “representado” (Guénoun, 2003: 16). Outras ainda, conseguem requisitar o frescor de novidades. Certamente a dramaturgia do ator é das mais notórias dentre elas. Muitas vezes, prefere-se dizer a dramaturgia do performer, talvez apenas para sublinhar que ela pode ser livre da dramaturgia do encenador. Mas muitas outras dramaturgias se afirmam: do espaço, do corpo, da imagem, do objeto, da luz, do som, da voz, do espectador, etc. São as dramaturgias diretamente associadas ao acontecimento, à “representação” (ibidem).


Tamanha dissolução constitui-se hoje em “uma paisagem tão rica e variada quanto confusa e atormentada” (Pavis, 2017: 206). Passado o século XX, o debate persiste e não apenas por “considerações estéticas (…) No fundo, trata-se de saber em que mãos cairá o poder artístico” (Roubine, 1982: 45). Já que todos parecem, afinal, candidatos a ocupar o centro de poder do “dramaturgocentrismo” (Danan, 2010: 40), que conseguiu deslocar o que, até o final do século XIX, estava no “textocentrismo” (Roubine, 1982: 48), o conceito de “descentramento” enunciado por Pavis, a partir de Derrida, ressoa muito potente: descentramento do texto ou da encenação, descentramento do ator e descentramento do espectador.


Na filosofia de Derrida, o centro é uma metáfora para a origem fixa, o ponto de partida do texto: tantas noções que se trata de criticar, de desconstruir, para sugerir que o texto não tem origem fixa e que seria melhor concebê-lo como uma rede sem origem nem final, sem profundidade nem sentido oculto. (Pavis, 2017: 77)


Descentrado de seu sentido único e verdadeiro, o texto dramático desdobra-se em uma rede de significações. Diante disso, a encenação flerta com diferentes pontos de vista, o ator se liberta da impossível dissolução de si no personagem, o espectador “distancia-se de sua antiga obsessão pela harmonia” (idem, 78). E ainda mais: a perspectiva se inverte. As condições estão criadas para que cada espectador possa se interrogar sobre o sentido. O seu sentido “pessoal e intransferível” (Barba, 2010: 258).


O legado de Stanislavski


No começo do século XX, Stanislavski ainda está muito longe da dissolução e do descentramento da dramaturgia. Ele ainda tem em mente que é preciso “estudar e vir a conhecer o essencial na obra de um dramaturgo” (Stanislavski, 1984: 257). Porém, em seu aluno/ator, ele se empenha em estimular uma atitude perante o enredo, uma responsabilização sobre a personagem. Para quê? Para ver, realizados em cena, “sentimentos humanos vivos, verdadeiros” (idem, 260) e não uma análise intelectual da peça e do papel.


– Agora, espero que você compreenda a diferença que existe entre abordar e avaliar um papel como você mesmo e avaliá-lo como outra pessoa. Entre enxergar um papel com os seus próprios olhos e vê-lo com os do autor, do diretor ou de um crítico teatral. (idem, 266)


Inspirado pelo teatro dramático realista, particularmente pela obra de Tchekhov, Stanislavski quer limpar o palco dos clichês que, ao seu tempo, eram herança da tradição que pretendia “dar a ver as palavras” (Guénoun, 2003: 47) do texto através de ornamentação retórica. Ele quer “transpor para o palco o movimento da vida, com sua qualidade de renovação contínua, de imprevisibilidade” (Zaltron, 2021: 40).


Com isso em mente, Stanislavski ambiciona construir um método no qual o ator precisa procurar por pequenas ações físicas a partir de respostas sinceras às perguntas formuladas para si mesmo, dentro das circunstâncias determinadas pelo dramaturgo. Para criar a vida física e se sentir no papel, o ator irá adiante, com atenção e tempo, repetindo a sequência anteriormente construída de ações físicas para, em uma espécie de refinamento, ativar os estímulos interiores para cada ação. Sucessivamente, o processo recomeçará até chegar à tarefa mais importante: a criação da entidade espiritual do papel.


– A entidade física é de vocês, os movimentos também, mas os objetivos, as circunstâncias determinadas, são comuns a ambos. Onde é que vocês acabam e onde começa a personagem?

– É impossível dizer – exclamou Vânia, que estava todo confuso.

– Mas não se esqueça de que essas ações que vocês encontraram não são simplesmente externas; são justificadas interiormente pelo seu sentimento, são reforçadas pela fé que você tem nelas, são vivificadas pelo seu estado de ‘eu sou’. (Stanislavski, 1984: 275)


Stanislavski defende com ênfase a independência dos atores criativos, ou seja, aqueles capazes de extrair o seu material criativo a partir de sua própria experiência de vida. Desafia seus alunos/atores a avaliar o seu método, em comparação com a prática de outros diretores de outros teatros, que comumente tentam impingir aos atores um plano já estabelecido, frio, intelectual, ilustrativo e que tolhe a liberdade do ator. Ainda muito longe de propor uma dramaturgia do ator, ele já é capaz de, através de seu método, pressentir o que estava ainda por vir:


Quando me sinto assim, estou muito próximo do estado de ‘eu sou’, e nada me assusta. Assim plantado numa base firme, posso manipular tanto a minha natureza física quanto a espiritual, sem receio de ficar confuso e perder o terreno. (…) Se ambas as caracterizações, a externa e a interna, se basearem na verdade, não poderão deixar de mesclar-se, criando uma imagem viva. (idem, 292)


Dramaturgias articuladas: ator, encenador e espectador


Sem reivindicar o conceito para si(2), provavelmente foi Eugenio Barba quem mais profundamente fixou a dramaturgia do ator em nosso saber contemporâneo sobre a prática teatral.


No decorrer dos anos, eu tinha me acostumado a definir o trabalho do ator como “dramaturgia do ator”. Com esse termo eu me referia tanto à sua contribuição criativa no crescimento de um espetáculo quanto à sua capacidade de enraizar o que contava numa estrutura de ações orgânicas. (Barba, 2010: 57)


O legado de Stanislavski é evidente no pensamento de Barba sobre o trabalho do ator. Por exemplo, quando diz o que entende por “partitura”, as palavras do mestre ressoam nas suas:


Noite após noite, o ator dá vida às ações da personagem repetindo uma partitura de ações que normalmente foi fixada nos mínimos detalhes. (…) A partitura era a manifestação objetiva do mundo subjetivo do ator. (…) A partitura era a busca da ordem para dar espaço à Desordem. (idem, 62-63)


A busca pela “vida latejante da nossa personagem” (Stanislavski, 1984: 291) no método de Stanislavski dará lugar à “Desordem” na dramaturgia do ator em Barba:


(…) a Desordem (com maiúscula) é aquela lógica e aquele rigor que provocam a experiência do desconcerto em mim e no espectador. A Desordem é a erupção de uma energia que nos coloca diante do desconhecido. (Barba, 2010: 49)


No entanto, Barba não faz apenas uma releitura atualizada dos seus mestres(3). A sua contribuição é muito potente porque ele se esforça em articular a dramaturgia do espectador à dramaturgia do ator. É nesse esforço que ele lança um desafio que, ainda hoje, está longe de ser uma rotina no mundo do trabalho teatral. Buscando esclarecer o que entende por orgânico no trabalho do ator, ele faz uso do conceito de “empatia cinestésica”:


O movimento de qualquer pessoa põe em jogo a experiência do mesmo movimento por parte de seu observador. A informação visual gera, no espectador, uma participação cinestésica. (…) Isso quer dizer que as tensões e as modificações do corpo do ator provocam um efeito imediato no corpo do espectador até uma distância de dez metros(4). (…) O visível e o cinestésico são indissociáveis: aquilo que o espectador vê produz nele uma reação física, a qual, sem que ele saiba, influencia sua interpretação sobre o que vê. Essa relação entre dinamismo do ator/dançarino e dinamismo do espectador também é chamada de ‘empatia cinestésica’. Entendo por “orgânico” as ações que provocam uma participação cinestésica no espectador (…) (idem, 57)


Para seguir em frente, na direção da articulação da dramaturgia do espectador à dramaturgia do encenador, antes é necessário justificar porque Barba insiste em falar de uma dramaturgia do espectador:


Pode parecer estranho falar de ‘dramaturgia do espectador’, e muitas vezes disseram na minha cara que é uma expressão que não tem sentido nenhum. Eu a mantive com teimosia. Ela me servia para indicar meu principal esforço: criar um espetáculo que pudesse assumir um sentido compartilhado e, ao mesmo tempo, que pudesse sussurrar uma diferente confidência para cada um dos espectadores. E que se mostrasse diferente a cada vez que alguém o visse. (idem, 43)


Barba trabalha com dois pressupostos fundamentais para a compreensão da articulação em pauta neste artigo. O primeiro, ele herdou de Grotowski. Segundo ele, “Grotowski afirmava que o ator não deve recitar para o ‘público’: mas para cada um dos espectadores” (idem, 23). A partir do século XX e da publicação das ideias de Freud sobre a psicanálise, torna-se muito difícil sustentar a ilusão de que é possível e exequível produzir uma interpretação única e verdadeira da representação por todos os espectadores. E sustentar ainda que a própria natureza do teatro está em dogmaticamente praticar uma organização hierárquica e lógica que começa no texto e termina no público. No encontro em vida entre atores e espectadores, naquele único e irreproduzível espaço e tempo, cada espectador desempenha o seu próprio papel e “reescreve” as demais dramaturgias segundo a sua história singular: o seu imaginário, as suas memórias emotivas, a sua percepção do real. E, para isso, ao contrário do que afirma Pavis, não é necessário que as demais dramaturgias sejam “ilegíveis” (Pavis, 2017: 210). Em suma, cada espectador é totalmente independente dos demais, mesmo nas situações em que reagem em bloco.


O segundo pressuposto assumido por Barba diz respeito à sua função como encenador. Ele repete sistematicamente que o encenador é o primeiro espectador:


Trabalhar a dramaturgia do espectador significava, para mim, operar em diferentes níveis sobre a sua atenção através das ações dos atores. Eu me comportava como o primeiro espectador, com uma dupla atitude de estranhamento e identificação. (idem, 253)


É recorrendo à palavra transição que ele se propõe solucionar o paradoxo da situação em que se coloca: como poderia simultaneamente ser o mestre que dá sentido ao representado e estar ignorante na experiência do acontecimento? Segundo ele, a “transição é o caminho permanente da desfamiliarização e da estranheza” (idem, 286). Recorre também frequentemente à sua “obstinação em permanecer estrangeiro” (idem, 30). E se define “como o estrangeiro que desce do trem, não reconhece nada e diz: essa é a minha casa” (idem, 165).


E é assim – movendo-se entre o lugar do encenador e o lugar de primeiro espectador – que ele pretende expandir a sua participação como encenador para além da passagem que leva do representado para a representação. Nos ensaios, o trabalho do encenador passa a ser o de abrir e manter abertas as fissuras por onde podem circular a indeterminação, a flexibilidade, a imprevisibilidade. O corpo do encenador é também um corpo em ação.


Conclusão


A articulação, arquitetada por Barba, das dramaturgias do ator, do encenador e do espectador parece afinal desmontar a eficácia de qualquer esforço para uma outra articulação, tantas vezes idealizada no talento do ator: aquela que pretende organizar as ações ou a “capacidade que elas podem ter de parecer inventar-se no momento em que ocorrem no espaço-tempo do palco” (Danan, 2010: 55). Em suas escolhas, ele parece buscar uma maneira de evitar o sentido, de fugir ao significado e à perseguição ao mimetismo do representado. Ele parece tentar reduzir os elementos invariantes da representação ao concreto, à matéria. E para alcançar este objetivo, foi necessário apresentar aos atores algo que fosse muito além de um sentido a ser representado:


Quando eu falava de dramaturgia do ator, queria ressaltar a existência de uma sua lógica que não correspondia às minhas intenções de diretor, e nem àquelas do autor. O ator extraia essa lógica da própria biografia, das próprias necessidades, da experiência e da fase existencial e profissional em que se encontrava, do texto, da personagem ou das tarefas que tinha recebido, das relações com o diretor e com os outros companheiros. (Barba, 2010: 58)


Em meio às crises do drama e dramaturgia, Eugenio Barba e o Odin Teatret são ainda uma referência importante e fecunda para quem procura por um princípio político na representação teatral. Ao (des)“identificar olhar e passividade” (Rancière, 2014: 16), ele talvez ajude a eliminar a distância entre encenador/atores e espectadores e, quem sabe, reverter “a baixa de afluência aos teatros (…) porque um público só vem ao teatro quando acredita, sabe ou quer ser politicamente ativo” (Guénoun, 2003: 39). Se o encenador é o primeiro espectador, por que não pensar no espectador como o último encenador e que, na representação teatral, afinal é ele quem põe em cena? Assim, ele é o sentido – a razão de ser – e é quem atribui o sentido – o significado. Ou ainda, como afirma Danan, referindo-se a John Cage, o “valor conferido à experiência de espectador tem em vista abolir a fronteira entre a arte e a vida, ou mesmo abolir a arte em benefício da experiência vivida” (Danan, 2010: 61).


Notas


(1) “De acordo com o Littré, a dramaturgia é a ‘arte da composição de peças de teatro’.” (Pavis, 2008:113)

(2) Pavis afirma que foi Eugenio Barba quem criou a expressão “dramaturgia do ator” e a define como “um modo de trabalho em que o ator (…) escolhe seus próprios materiais (…) para reuni-los pouco a pouco no curso de improvisações individuais”. No entanto, é bastante questionável a sua afirmação de que a dramaturgia do ator “é, no fundo, um modo comum de trabalho teatral” (Pavis, 2017: 207).

(3) Roubine delineia claramente o curso de uma herança ao afirmar que “é inegável que Grotowski tem uma dívida para com o sistema de Stanislavski” e que, sob a influência dos princípios do Teatro Laboratório de Jerzy Grotowski, o Odin Teatret é “o conjunto que foi mais longe nesse caminho” (Roubine, 1982: 195-196).

(4) São escassas as propostas de formatos para o encontro teatral que conseguem, ao mesmo tempo, contemplar a sustentabilidade econômica do evento e a demolição da segmentação espacial entre atores e espectadores naturalizada pela arquitetura do edifício teatral tradicional. A maioria delas é dependente do patrocínio de governos ou empresas.


Referências


BARBA, Eugenio (2010), Queimar a casa: origens de um diretor, trad. Patrícia Furtado de Mendonça, São Paulo, Perspectiva.

DANAN, Joseph (2010), O que é a Dramaturgia?, trad. Luís Varela, Editora Licorne.

GUÉNOUN, Denis (2003), A exibição das palavras: uma ideia (política) do teatro, trad. Fátima Saadi. Rio de Janeiro, Teatro do Pequeno Gesto.

PAVIS, Patrice (2008), Dicionário de teatro, trad. Maria Lúcia Pereira, J. Guinsburg, Rachel Araújo de Baptista Fuser, Eudynir Fraga e Nanci Fernandes, 3a. ed., São Paulo, Perspectiva.

–, (2017), Dicionário da performance e do Teatro Contemporâneo, trad. J. Guinsburg, Marcio Honorio de Godoy, Adriano C. A. e Sousa, São Paulo, Perspectiva.

RANCIÈRE, Jacques (2014), O espectador emancipado, trad. Ivone C. Benedetti, São Paulo, Martins Fontes.

ROUBINE, Jean-Jacques (1982), A linguagem da encenação teatral, trad. Yan Michalski, 2a. ed., Rio de Janeiro, Zahar Editores.

STANISLAVSKI, Constantin (2000), A Criação de um Papel, trad. Pontes de Paula Lima, 7a. ed., Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.

ZALTRON, Michele (2021), Stanislávski e o Trabalho do Ator Sobre Si Mesmo, 1a. ed., São Paulo, Perspectiva.


Manoel Prazeres, 27 de outubro de 2022