Dramaturgia das Coisas

Dramaturgia das Coisas

Primeiro, vieram as tarefas. Depois, vieram as coisas. E, por fim, viemos nós, os indivíduos. A massificação da tecnologia baseada no computador nos trouxe ao espaço virtual. Nele, a narrativa é a ferramenta ideal para criar e melhorar o papel social que pretendemos desempenhar. Dramaturgia das Coisas é o conceito que estou interessado em desenvolver para investigar as características e os desdobramentos da hipertrofia narrativa no espaço virtual.

A longa jornada tecnológica do computador

Como toda tecnologia desenvolvida a partir da investigação científica, o computador foi inventado para solucionar uma carência humana. Há milênios, a humanidade já utilizava algum tipo de calculadora mecânica como ferramenta auxiliar à sua habilidade de contar e calcular. E foi também para isso que o computador foi inventado: para calcular ou computar. Singelamente falando, ele efetua cálculos matemáticos muito simples. Então, qual é a carência que ele soluciona? Vejamos o cálculo da média aritmética. Somamos os números de um conjunto e dividimos o resultado pela quantidade de números no conjunto. Por exemplo, para calcular a média aritmética das idades dos onze jogadores de um time de futebol, somamos as onze idades e dividimos o resultado por onze. Não precisamos do computador para isso. Porém, alguém se arrisca a calcular a média aritmética das idades dos 1500 milhões de chineses? O enorme tempo necessário e a enorme quantidade de erros que seriam cometidos tornam inútil o esforço. Para um computador, uma fração de segundo é tempo suficiente para efetuar o cálculo sem erros. Ou seja, a velocidade, a precisão e, consequentemente, a capacidade de processar uma quantidade de dados excepcional é que alçaram o computador ao status que hoje ele ocupa: ele é tratado como a tecnologia definitiva, ou seja, aquela que aparenta ser absolutamente confiável e que jamais se tornará ultrapassada.

E foram algumas aplicações puramente matemáticas que acabaram por justificar, entre os anos 1930 e 1950, os imensos investimentos necessários à construção dos primeiros dispositivos eletrônicos que, afinal, fariam o que quase todo ser humano já fazia. Isso porque, naquele momento histórico, foram cálculos que contribuíram para definir o rumo das grandes guerras mundiais: decodificaram mensagens criptografadas pelo inimigo, calcularam a trajetória dos projéteis disparados pelos canhões e solucionaram vários outros objetivos militares. Nas décadas seguintes, com o desenvolvimento da ideia de dividir logicamente o computador em duas camadas – uma dura (hardware) integrada por memória e processador e, sobre ela, outra macia (software) formada por dados e algoritmos – rapidamente tornou-se possível modelar a quase totalidade das tarefas humanas para depois entregar àquela máquina a capacidade de acelerar e expandir a sua operacionalização: da guerra à medicina, da engenharia à propaganda, das finanças à arte, da educação ao crime. Estava criado o computador de uso geral e, consequentemente, útil para muitos usuários.

Daí em diante, a cada nova geração tecnológica, o computador conquistava cada vez mais adeptos. Quatro eventos foram marcantes nessa jornada: o computador pessoal, a conectividade em rede, a web com a navegação através de hiperlinks e as mídias sociais. Enfim, desde os derradeiros anos 2000, o smartphone transformou-se no protagonista e garoto-propaganda do espaço virtual que então se constituía, porque para ele convergiram os principais requisitos do mercado: é pessoal, está conectado na rede, é móvel e privilegia a comunicação.

As mídias sociais: a comunicação no espaço virtual

É exatamente a migração da comunicação para dentro do computador que impulsiona o aparecimento de um extraordinário evento nessa jornada: as mídias sociais. A partir dele, deixamos de simplesmente fazer uso de uma tecnologia, como sempre fizemos com todas as anteriores, e passamos a estar nela. Como veremos adiante, rapidamente propagou-se a ilusão de um espaço virtual de socialização onde, como na comunicação presencial, somos todos emissores e receptores simultaneamente.

As mídias sociais são pensadas como um espaço virtual onde indivíduos podem se encontrar para gerar e trocar ideias, pensamentos e informações sobre os mais diversos assuntos em diferentes formatos: texto, áudio, imagens estáticas ou em movimento. Na comparação com os espaços presenciais tradicionais de socialização humana, elas têm a seu favor a velocidade e o alcance geográfico. As afinidades de interesses ganham uma dimensão global até então reservada a pequenas esferas de poder político ou econômico. O cidadão torna-se um indivíduo em um desmedido espaço coletivo livre das limitações materiais e políticas. Repentinamente, as pequenas oportunidades e ambições cotidianas tornam-se enormes e todos podemos ambicionar o máximo sucesso.

A dramaturgia no espaço presencial

O sociólogo canadense Erving Goffman (1922-1982), em seu livro A Representação de Si Mesmo na Vida Cotidiana (1956), fez uso dos princípios da dramaturgia e das técnicas da representação teatral para estudar o comportamento social humano em situações cotidianas de trabalho ou familiares. Segundo o seu ponto de vista, cada indivíduo apresenta a si mesmo e suas ações perante os outros indivíduos como um ator que representa um personagem no palco perante os outros atores, que também representam os seus próprios personagens. Agindo assim, o indivíduo pretende controlar, conscientemente ou não, a impressão que dele se pode formar através das ações que deve ou não fazer durante a sua performance. Neste modelo, os outros são também o público. Consciente das inadequações do modelo, Goffman, porém, ressalta que “o palco apresenta coisas que são do mundo do faz-de-conta e que, presumivelmente, a vida apresenta coisas que são reais e às vezes não são bem ensaiadas” (GOFFMAN, 1959, prefácio). O objetivo geral é que cada indivíduo contribua com a sua parte para o bom funcionamento da sociedade. Não para uma utópica harmonia baseada nos sinceros sentimentos de todos, mas para um acordo real sobre as expectativas possíveis de serem honradas temporariamente.

A credibilidade no espaço virtual

Mais recentemente, inspirada por Goffman e outros pensadores, uma emergente investigação acadêmica interdisciplinar intitulada Estudos do Technoself tem tratado dos diversos aspectos da identidade humana em uma sociedade tecnológica. É provável que a Dramaturgia das Coisas esteja em diálogo com ela. Eu, entretanto, procuro me concentrar na questão da credibilidade porque para o indivíduo se fazer ouvir na roda-viva do espaço virtual, não são suficientes os modernos recursos tecnológicos amplamente disponíveis para melhorar o desempenho, atrair a atenção dos outros e atribuir notoriedade. É preciso também construir uma narrativa de si mesmo que conquiste credibilidade.

Dentre as diversas técnicas teatrais, a questão da credibilidade é tratada na dramaturgia pela verosimilhança e pela suspensão da descrença.

No dicionário, a verosimilhança é a qualidade do que é verosímil, ou seja, do que tem aparência ou semelhança com a verdade. Porém, o objetivo do dramaturgo é obter credibilidade e, para isso, a sua arte consiste em manipular adequadamente os elementos ficcionais em função da coesão interna à obra. Segundo Aristóteles (384-322 a.C.) em sua Poética, “deve preferir-se o impossível verosímil ao possível inverosímil” (ARISTÓTELES, 2008). Por exemplo, em um elementar modelo dramático, um elefante poderá voar se assim representar adequadamente os mais elevados valores morais humanos, enquanto, ao contrário, uma borboleta poderá rastejar se assim representar também adequadamente os mais baixos valores morais humanos.

A suspensão da descrença é o ato recíproco e voluntário do espectador de atribuir temporariamente credibilidade aos mesmos elementos ficcionais em favor da fruição da obra. A expressão foi cunhada pelo poeta inglês Samuel Taylor Coleridge (1772-1834). Segundo ele, “O poeta não exige que estejamos acordados e acreditemos; ele nos pede apenas que nos entreguemos a um sonho; porém, com os olhos abertos e com nosso juízo escondido por detrás da cortina, prontos para nos fazer despertar ao primeiro impulso de nossa vontade: e, enquanto isso, apenas que não desacreditemos.” (COLERIDGE, 2004)

Para falar da credibilidade no espaço presencial, Goffman divide a expressividade do indivíduo em dois tipos: a que ele transmite através de ações e informações governáveis (comunicação no sentido estrito) e a que ele emite através de ações e informações ingovernáveis ou sobre as quais ele parece ter pouca consciência ou controle (comunicação no sentido amplo). A expressividade ingovernável será utilizada pelos receptores da comunicação para verificar a credibilidade da expressividade governável. Sabendo disso, o indivíduo tentará governar na totalidade a sua expressividade sempre buscando que apareça espontânea aos outros. No entanto, estes poderão desconfiar que ele está manipulando o jogo e irão à procura de alguma nuance não calculada em seu comportamento. Este ciclo é potencialmente infinito e composto por vários comportamentos sociais: tomada de consciência, ocultação, descoberta, falsa revelação, etc.

Este jogo, que acabei de resumidamente descrever, é abolido no espaço virtual, onde as ações e informações comunicadas não se realizam no agora presencial e sensível. Consequentemente, o ciclo de interações necessário à verificação da credibilidade da expressividade é incapaz de gerar qualquer correspondência empática já que é conduzido por algoritmos construídos com a pretensão de resolver, em benefício dos indivíduos, o problema da relevância de algumas mensagens sobre as outras. Instala-se uma economia da interatividade. Em paralelo, o indivíduo é constantemente incentivado a tentar melhorar o seu desempenho na comunidade adaptando a sua identidade que afinal, desde a sua adesão como usuário, tratou-se apenas de uma versão mais próxima ou mais distante de si mesmo no espaço presencial. Em geral, nas mídias sociais, os indivíduos imaginam que estão livres dos seus corpos sensíveis e da temporalidade biológica deles. Assim, neste espaço que não é confessadamente de ficção e que, ao contrário, pretende se passar como sendo de socialização, resta somente a técnica dramatúrgica da verosimilhança como meio de obter credibilidade.

Até aqui, o meu raciocínio parece levar à conclusão de que as mídias sociais seriam apenas mais uma mídia de comunicação de massa como são o cinema, o rádio e a televisão. Em parte sim, mas podemos ir mais longe quando retomamos o que é, sob o meu ponto de vista, a característica essencial do computador: a excepcionalidade da sua velocidade e da quantidade de dados processados. Como o computador apenas obedece aos comandos que lhe são prescritos e, desprovido de qualquer senso crítico, não se aborrece repetindo e repetindo infinitas vezes seja lá o que for, ele é assim um ótimo dispositivo para efetuar ações repetitivas e obstinadas. A efetividade da frase “Uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade” está na ação repetitiva e obstinada. Como fomos transportados para um espaço virtual movido pelo computador, a minha suposição é que, acabamos imergindo em um desmedido mundo do faz-de-conta onde, diante da irrupção ininterrupta e colossal de narrativas, somos tomados pelo cansaço e abdicamos da nossa prerrogativa de duvidar, de retomar a descrença. Como autômatos, aderimos às narrativas que, mesmo sendo inverosímeis, afetivamente melhor aplaquem a nossa solidão e nos incorporem em alguma comunidade virtual, mesmo que temporariamente.

Por que Dramaturgia das Coisas?

A ideia de conectar na rede quaisquer objetos físicos através de sensores já existia em 1999. Faltava nomeá-la. Foi o que fez o britânico Kevin Ashton. Surgiu a Internet das Coisas (IoT – Internet of Things). Nela, os objetos físicos têm embarcados dentro deles componentes eletrônicos suficientes para passarem a ter a capacidade de um computador de uso geral, porém com funcionalidade reduzida pelas suas características mecânicas. Ganharam o apelido de equipamentos inteligentes. A transformação do telefone móvel no smartphone é o exemplo mais popular dessa ideia. Mas, o poder dela é avassalador. Das geladeiras e televisões, passando pelas câmeras de segurança e equipamentos médicos, logo chegou ao corpo humano e outros corpos vivos. Ela instala a onipresença da tecnologia e do virtual no real.

Em maio de 2018, inspirado por ela, eu criei o conceito de Dramaturgia das Coisas (DoT – Dramaturgy of Things). Inspirado também pela sensação de estar imerso não apenas em um mundo novo constituído por muita tecnologia mas também por muita narrativa, como Guy Debord (1931-1994) antecipou em seu livro A Sociedade do Espetáculo (1967).

Como é possível avançar a partir daqui?

Diante da situação anteriormente descrita e que eu chamo de hipertrofia narrativa no espaço virtual, como a Dramaturgia das Coisas poderá me ajudar a pensar na possibilidade de investigar mais profundamente o papel que as mídias sociais têm desempenhado no continuum afastamento e colapso da dicotomia entre o real e o virtual? Para finalizar este artigo, apontarei dois possíveis desdobramentos. Mas, antes, quero recuperar a definição da palavra virtual no dicionário: virtual é aquilo que existe potencialmente, aquilo que é possível de se realizar, aquilo que é simulado por meios mecânicos ou eletrônicos.

Primeiro, através de um esforço de investigação teórica no campo das ciências sociais, eu proponho duas perguntas como ponto de partida: Será que, sob o efeito do cansaço que nos faz abdicar da prerrogativa de duvidar, estamos perdendo a capacidade de afastar o real do virtual e estamos mais propensos a nos fanatizarmos e sobrepor ao real as consequências das narrativas do virtual? Será que, desprovidos da dúvida e seduzidos por uma tênue base científica, estaríamos mais propensos a abolir a ideia do impossível e atribuir credibilidade narrativa a uma enorme variedade de ideias disruptivas – e muitas vezes distópicas – que estariam à espera da humanidade no futuro próximo: de veículos autônomos à telepatia, passando pela colonização de planetas?

Já como um esforço de investigação prática no campo da dramaturgia, eu proponho a seguinte pergunta como ponto de partida: Ainda será possível estimular nas mídias sociais a tão saudável prática social da suspensão e posterior retomada da descrença em favor da fruição do material que nelas é publicado, e que penso não ser exagero chamar de obra de ficção já que é basicamente resultado de um trabalho dramatúrgico? Neste sentido, penso que é preciso recuperar um rito de passagem que foi historicamente fundamental para a construção da experiência teatral como ela é hoje reconhecida: o momento em que o ator pede licença para se afastar do convívio cotidiano, entra no camarim e, de lá, irrompe no palco representando o seu personagem. O efeito é semelhante ao da famosa frase “Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência”. Ambos servem para alertar o espectador para a tarefa que caberá a ele diante do que verá, ou seja, verificar as medidas entre o que é real e o que não é.

Referências bibliográficas

ARISTÓTELES. Poética. Tradução de Ana Maria Valente. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008.

COLERIDGE, Samuel T. Biographia Literaria. EBook #6081, Project Gutenberg, Release date Julho de 2004, Última atualização Janeiro de 2013. Disponível em http://www.gutenberg.org/ebooks/6081. Acesso em 27 de julho de 2021.

GOFFMAN, Erving. The Presentation of Self in Everyday Life. New York: Doubleday Anchor Books, 1959.

Manoel Prazeres, 27 de julho de 2021
(última atualização: 26 de agosto de 2021)